Caminho Francês de Santiago: Dia VIII, Último dia!

01/08/11




Umas horas após a bem disposta jantarada da noite anterior, acordei convencido de que iria de facto completar a travessia de Espanha pelos afamados caminhos de Santiago, conhecido este pelo caminho francês, num prazo de oito longos dias. Os meus companheiros também o desejavam, apesar de a determinada altura termos duvidado, e não fosse aquela incursão por estrada durante um dia e meio e muito provavelmente não estariamos a cerca de 120 kms de Santiago de Compostela. Em todo o caso, a tarefa não seria de todo fácil, porque havia o calor, a despeito da manhã bastante fresca, sempre, a obrigar-me a encorpar o casaco térmico (boa lembrança) e as luvas fechadas (outra boa lembrança). Ainda não sabia bem o que iria apanhar pela frente, mas de uma coisa tinha a certeza; hoje era para chegar ao destino, desse por onde desse. E por trilhos, porque foi para isso que aqui vim. Sem discussão.
Quando despertei, também os companheiros começaram a movimentar-se. Os outros, o Carlos, a Nabila e o Rúben, mais um checo que ali se acomodou, todos dormiam profundamente. Os shots da noite anterior terão sido  excelentes sudoriferos. No final, já prontos para iniciar aquela que se esperava ser a última etapa, deixámos um papelinho (sugestão do Pajó) para lhes deixar um pouco do nosso carinho pelos momentos bons que passámos juntos, momentos que ficam do lado esquerdo do peito.
Quando meti os pés aos pedais, os músculos rangeram, o coração espirrou a custo, mas a mente mandava e tudo o resto teria de obedecer. Começámos sem nada no estômago. Sabíamos, veteranos que já éramos, que mais à frente haveria de aparecer uma daquelas tendas de bocadillos e café com leche grande, o maior que tivesse. Ainda demorou um pouco, mas lá apareceu. Até lá, levámos com umas subidinhas a prenunciar um trajeto difícil até ao fim. Não iria ser fácil. E connosco, muitos peregrinos madrugadores. Aliás, pela manhãzinha apanhamos sempre mais, porque iniciam cedo a sua trajetória e demora algum tempo até que os vamos encontrando a espaços. O engraçado é que parceiros de bicicleta nem vê-los. Seriámos os mais precoces do dia?
Pequeno almoço tomado e a coisa era outra. Num ápice, o corpo rejubila, procurando enganar o cansaço. E lá vamos. Os trilhos são muito bonitos, mas desafiantes, num constante sobe e desce. A páginas tantas, vimos uma carrinha do tipo da minha que diz transportar mochilas. Há negócio para tudo, até para aliviar as penitências da alma. Já bem próximo da hora do almoço, eu e o Zé alcançamos uma italiana de bici, toda cheia de patrocínios, como veio a confessar.  Romana, da AS Roma, e após alguns minutos de converseta, deu-nos uma dica que seria utilíssima; em Melide havia a especialidade do polvo. Hmm, a ideia era um motivo mais para chegarmos depressa. Assim foi, passados 7/8 kms lá estávamos. Antes, inseríamos o Pajó no comboio porque tinha descarrilado algures e vindo por estrada. Quando aportámos ao restaurante, um numeroso grupo de espanhois, de Barcelona, namorados e namoradas, ficaram delirantes com o meu dragão verde. Ela perguntou-me logo se poderia buzinar no dito. Com aqueles olhos em delírio infantil, como se recebesse o primeiro brinquedo da sua vida, disse-lhe que sim. E ela buzinou. E eles riram todos. E eu disse-lhe que tinha outro dragão para buzinar, só que não apitava. Eles olharam para mim perplexos, mas depois, perante a minha cómica expressão, perceberam que era para todos brincar, e riram e gargalharam até mais não. Foi um momento marcante de efusiva e espontânea alegria. Pelo meio da conversa, alguém quis vender-me a mulher, pela bicicleta. Disse-lhe que se comesse mais polvo aquilo passava-lhe. Mais risos.
Bom, mas tínhamos de comer, esse o propósito principal, e assim o fizemos. O manjar estava uma delícia, apesar de regado com cola, daquelas, sabem? Naqueles pratos algo já lembrava a gastronomia portuguesa; o  farto azeite, a batata cozida a acompanhar. E claro, o polvo, aos pedaços, numa giratória de madeira. Havia ainda a salada e os pimentos. Ficámos plenos. E aparece a italiana. Salta de imediato o Pajó que a convida e ela aparece. Trocamos frases e ideias de hábitos e práticas de vida, mas temos de ir à nossa vida. Ela diz que ainda vai bater uma siesta antes de se fazer à estrada. Nós íamos fazer o mesmo, mas em cima da bici.
Faltam-nos 60 kms e temos cerca de 4 horas para o fazer, mais coisa, menos coisa. 
Mal haviamos retomado o curso, lá vêem novamente os espanhois de Barcelona e ela quer novamente tocar na buzina. Tou tramado. Tenho de me desviar, com um sorriso. Andavam meio desorientados, dizemos-lhes qual a direção que devem tomar e vamos. Mais à  frente, alguém ao ver passar as bicicletas grita Portugal! Viva, responde-se. O sol aperta a coisa, os trilhos não estão nada fáceis. Eele é um constante sobe e desce e o cansaço acumulado. O Zé aguenta-se à bronca, coitado. Não baixa os braços, nunca se queixa. Mete o seu ritmo e cerra os dentes. É para acabar hoje. 
Tempo para lanchar e refrescar os corpos e as ideias. Bocadillos, que haveria de ser? com presunto e queijo, tudo serrano. Mais cocas, daquelas, sim. Ao retomar a tarefa, uma brasileira meio despercebida na esplanada diz-me que finalmente vê portugueses. Estranho, mas sempre lhe digo que só agora viu vários. Trocamos felicidades e lá vou, à procura dos parceiros que se adiantaram um pouco.
A dada altura, o Pajó segue por estrada. Ele diz que nos perde o rasto. Nós seguimos sempre, subida acima, descida abaixo. Há dois espanhois que treinam btt e vão-se cruzando connosco aqui e ali. Numa dada subida, o mais rápido alcança-me e eu sigo-lhe a roda. Não há alforges que me impeçam de o seguir e a adrenalina sobe. Fico com os bofes de fora no topo, altura de esperar pelo Zé, que continua na sua luta heroica de vencer cada subida que se lhe atravesse no caminho, mesmo que tudo lhe doa, mesmo que tudo o puxe para trás. E com a ganância de ultrapassar os tais espanhois, engano-me e levo o Zé ao engano, numa descida com várias opções. Temos de voltar atrás e retomar as setas. Voltamos a ver os espanhois no início de uma outra subida. Aceleramos e passa-mo-los em grande, os dois, até alcançar o Monte do Gozo e vislumbrar finalmente a bela ciudad de Santiago de Compostela. Encho-me de orgulho repentino, deliro por dentro. Se calhar, tenho razões para isso. Partilho com o Zé a alegria. À entrada da cidade, esperava o Pajó. Tinha vindo por estrada, novamente. Também não é fácil, mas mais direto, sim. Atravessamos lentamente as ruas de Compostela e aqui sim, saboreamos o nosso monte do gozo ou as ruas do gozo. São quase 9 horas, a cidade está em festa e assim continuará pela semana toda. Muita gente bonita. Muita gente instalada na praça principal, saboreando naquele lugar e naquele momento muitos dos momentos que os levaram até ali. É preciso ir buscar a Compostela, documento comprovativo do caminho realizado e que premeia o esforço de todos os que o fazem, seja a cavalo, de bici ou a pé. Cada uma terá as suas dificuldades. Ando perdido para encontrar o lugar onde me hão-de passar o tal documento. Os meus parceiros, que já sabem do lugar, adiantaram-se quando eu resistia a pedalar em contra-mão. Mas, depois de várias voltas, lá está o edifício. Entro quase à tangente. Fecha às 9 e faltam pouquíssimos minutos.
Depois de pedalar cerca de 120 kms em 8h e 36', e após umas fotos na praça para testemunho futuro, altura de procurar um albergue. O problema é que há imensa gente e os albergues andam esgotados ali no centro. Temos de nos deslocar mais para a periferia. Depois de mais 10 kms em cima, lá o encontramos. Moderníssimo, net gratuita, mas o mesmo conceito de muitos outros. Antes, havia entrado num outro, de nome Acuário. O cheiro a pato-xóli e uma cerimónia do tipo sociedade secreta, com toda a gente sentada À volta de uma mesa e um "sacerdote" adereçado de azul-cetim, fez-me concluir que ali não seria um lugar muito bom para uma noite descansada. A questão é que também no moderno albergue que nos acolheu a noite não foi nada pacífica; o ressonar de vários compinchas e o ar saturado, quase irrespirável, permitiu-me dormir apenas duas horas, talvez. É que na madrugada seguinte teríamos de estar na estação de ferro às 5h30'. Não, isto ainda não tinha acalmado.

O regresso foi conforme o esperado, excepto a qualidade dos serviços. Qualquer comparação entre os comboios regionais galego e português é apenas possível nos carris onde circulam. De resto...só para terem uma ideia, o nível do regional galego é superior em praticamente tudo ao alfa português. No regional português tive a sensação de regressar aos anos 70, quando os homens corriam a salto para França, arriscando a vida em rios, em montanhas, em denúncias e outras surpresas.

Fica acertado fazer o balanço final, mas hoje ainda me sinto cansado e é chegada a altura para me ir aconchegar nos lençóis.

Um abraço, companheiros.

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